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Espaços generificados, masculinidade hegemônica e a política das emoções

No contexto político, as mulheres são frequentemente associadas a papéis secundários, perpetuando a noção de que são tão inertes quanto os móveis de um ambiente, como enfatizado por Cynthia Enloe (2014) em "Bananas, Beaches and Bases". De certa forma, no cenário político cargos ocupados por mulheres não são considerados relevantes para a construção econômica e política, contribuindo para a construção de uma narrativa onde a presença feminina é equiparada ao conceito de “mobília”, sendo indiferente no ambiente e com pouca relevância. Observa-se que a presença feminina é ignorada e os traços associados à feminilidade são considerados defeitos dentro do cenário político. Esse cenário não restringe-se apenas aos indivíduos, de modo que tudo aquilo que é considerado “feminino” é compreendido como negativo, enquanto cada vez mais os Estados alinham seus comportamentos aos de uma masculinidade específica. Tal debate será melhor explorado nesse post com o apoio do conceito de masculinidade hegemônica e da perspectiva teórica da política das emoções.

Masculinidade Hegemônica

 

O conceito de masculinidade hegemônica foi tratado pela primeira vez na década de 1980 em estudos acerca de desigualdades sociais das escolas australianas. O conceito foi esquematizado no artigo “Towards a New Sociology of Masculinity”, o qual apresentou um modelo de diferentes masculinidades e diferentes relações de poder. Tratando-se das relações de gênero, é impossível não abordar também outras categorias de opressão, como raça e classe. Quando fala-se sobre hegemonia, segundo Connell e Messerschmidt (2013), remete-se ao termo gramsciano, utilizado especialmente para compreender relações de classe (Connell; Messerschimidt, 2013). A partir disso, é possível a discussão acerca do conceito de masculinidade hegemônica, que pode ser compreendido, de maneira simplificada, como um padrão de práticas que tornou possível a perpetuação dominação da figura masculina (homem cis, heterossexual e branco) sobre as mulheres (Connell; Messerschimidt, 2013).

Outro aspecto essencial é que a masculinidade é construída em relação às feminilidades, articuladas por meio do gênero, o qual é um processo institucional de relações de poder entre diferentes indivíduos. É necessário destacar também a existência de outras masculinidades além da hegemônica, as quais são subordinadas à hegemônica. Nesse caso, a ordem de gênero demonstra a sobreposição da masculinidade hegemônica sobre a feminilidade, bem como sobre essas outras masculinidades (De Jesus, 2014). Ainda, a delimitação de um papel do que é a masculinidade hegemônica demonstra que essa posição “superior” corrobora com a manutenção de um sistema de dominação de gênero (De Jesus, 2014).

Ou seja, para que a masculinidade continue dominante, o comportamento abusivo em relação às mulheres é o fator chave. Para manter a dominação masculina, torna-se necessário subjugar o sexo feminino. Enloe (2014) intencionalmente utiliza o termo "womeandchildren" para destacar a equiparação das mulheres e crianças dentro do sistema internacional, onde ambas são percebidas como incapazes de defesa própria.

Apesar da relação de subordinação e certa hierarquização entre as diferentes masculinidades é importante destacar que a masculinidade hegemônica não contempla uma maioria quantitativa de homens, contudo, é normativa, incorporando

“[...] a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.” (Connell; Messerschimidt, 2013, p. 245). A construção das instituições estatais foram dominadas por homens, de modo que a masculinidade hegemônica faz parte das estruturas dessas instituições, sustentada pela posição de poder que ocupa e não necessariamente pela violência. Por isso, é possível afirmar que toda discussão sobre gênero é também uma discussão sobre poder expresso pelo patriarcado (De Jesus, 2014).

Essa opressão não se limita apenas ao domínio político, mas se estende ao âmbito econômico, especialmente no mercado de trabalho. O capitalismo, está ligado à manutenção da hegemonia masculina, perpetuando e reforçando as desigualdades de gênero para poder se sustentar. No entanto, mesmo quando as mulheres conseguem romper com as barreiras políticas e adentrar esses espaços, são frequentemente tratadas como exceções, pressionadas a abdicar de suas características femininas e conformar-se aos padrões masculinos preestabelecidos. A participação política feminina é desvalorizada e sua capacidade de resistência é tratada como uma tema irrelevante na política. O comportamento abusivo para manter a masculinidade se encontra justamente no cenário político e especialmente no apagamento da presença feminina no cenário econômico.

“A masculinidade hegemônica foi compreendida como um padrão de práticas – não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade – que possibilitou que a dominação masculina continuasse. [...] Tal hegemonia não significa necessariamente violência, apesar de poder ser sustentada pela força. Ela aponta para ascendência alcançada por meio da cultura, das instituições e da persuasão.” (De Jesus, 2014, p. 320 - 321).

Hierarquizando as Emoções

 

Assim como os debates acerca de gênero, a política das emoções surge em um contexto hierarquizado. Essa foi uma lente teórica descartada por muito tempo nas ciências sociais, visto que foi estabelecida uma hierarquia, a qual colocou a racionalidade acima das emoções. Essa hierarquização ocorreu não só no campo da pesquisa, mas também no âmbito da política internacional, de modo que a racionalidade é sempre tida como comportamento ideal entre os Estados e o sentimentalismo e emoção algo do qual deveriam se afastar (Ahmed, 2014). Ainda “As emoções, durante tanto tempo identificadas com o privado, o feminino e o apolítico, corroeram a razão que era vista como a fonte mais confiável de conhecimento.” (Beattie, Eroukhmanoff, Head, 2019, p. 2, tradução nossa).

Assim como na discussão sobre masculinidade hegemônica, a política das emoções trata sobre papéis relacionais, ou seja, para que o Eu exista, é necessário também que o Outro exista, de modo que ambas as identidade irão se constituir mutuamente (Ahmed, 2014). No caso da política internacional não podemos compreender o que é uma superpotência se não tivermos Estados que não são superpotências. No caso do gênero, para compreender o que é masculinidade é necessário compreender o que é a feminilidade. Dessa forma, só somos capazes de entender quem somos, qual papel cumprimos, quando se tem contato com o Outro. Nessa perspectiva, os Outros são a fonte dos nossos sentimentos, ou seja, nossas ações e sentimentos são reações à ações externas de outros corpos, logo, as emoções vão determinar como determinados corpos irão se relacionar (Ahmed, 2014).

Para teorizar as emoções no âmbito internacional, é importante compreender que há uma diferença entre afetos e emoções. Os afetos estão relacionados àquilo que é sentido individualmente, enquanto as emoções são os sentimentos sentidos de forma coletiva, ou seja, possuem dimensão coletiva, os quais podem, mais facilmente, ser mobilizados politicamente (Ahmed, 2014; Beattie, Eroukhmanoff, Head, 2019). A coletividade das emoções reside no fato de que apesar de serem sentidas individualmente, sua expressão ocorre em relação e para os outros, especialmente quando o Eu e o Outro estão inseridos em uma mesma cultura e contexto social e histórico (Beattie, Eroukhmanoff, Head, 2019).

Nessa lógica é possível compreender que a ideia de racionalidade (tida como oposto do emocional ou sentimental) ocupa um papel central, algo a ser almejado e atingido, tanto individualmente quanto coletivamente e institucionalmente (De Jesus, 2014). Tais aspectos estão socialmente associados à masculinidade, enquanto a expressão dos sentimentos e emoções é considerado além de irracional, algo inferior e associado ao feminino, em outros termos, desassociado dos valores atrelados à masculinidade hegemônica. Ainda, além da centralidade discursiva acerca do papel de poder da masculinidade hegemônica, todos os modelos alternativos, sejam de outras masculinidades ou feminilidades são descredibilizados (De Jesus, 2014).

Soft Nation: Por que os Estados marginalizam essa identidade?

 

Como mencionado, tais processos de produção de identidades e valores atrelados à masculinidade hegemônica não ocorrem somente no âmbito doméstico. O que pode ser observado é uma grande competição entre Estados, principalmente potências, de quem demonstra ser o mais forte, mais militarizado, mais nacionalista e mais poderoso no Sistema Internacional. Sarah Ahmed (2014) em seu livro "The Cultural Politics of Emotion”, trata sobre os conceitos de soft touch e soft nation e como os Estados adotam esses conceitos em discursos de endurecimento de políticas, buscando se distanciar o máximo possível de ter um soft touch ou de ser uma soft nation.

Um dos exemplos tratados por Ahmed (2014) é sobre o endurecimento das políticas de asilo da Inglaterra. Em diversas narrativas o Estado é descrito como uma soft nation, pois estrangeiros tentam entrar no país com pedido de asilo para viver uma suposta “vida fácil e confortável”, de modo que o país, por estar aberto aos Outros, se torna mais vulnerável. Tais declarações levaram a Inglaterra a endurecer as políticas, reduzindo a entrada de pessoas com pedido de asilo, justificando a ação pelo desejo de não ser reconhecida como uma soft nation (Ahmed, 2014). Com esse caso, pode-se inferir que a soft nation ou a nação que possui o soft touch é emotiva e facilmente comovida pela narrativa do Outro, é uma nação que aceita. Em contrapartida, o que se espera, dada a estrutura instaurada pela masculinidade hegemônica, é que um país seja uma “nação dura”, menos emocional e que atue unicamente em nome de seus cidadãos, pois aceitar e ser passivo é estar mais vulnerável, mais propenso a correr riscos (Ahmed, 2014).

Assim, ter um soft touch e ser uma soft nation é correr o risco de não apenas ser feminino, mas também ser menos branco. Nessa narrativa, ser menos branco seria o mesmo que retroceder e se tornar primitivo (Ahmed, 2014). A hierarquização entre racionalidade e emoção, podem ser compreendida em Ahmed (2014) como uma hierarquização das emoções de modo geral, de forma que algumas emoções e sentimentos são superiores, como a racionalidade, enquanto outras são inferiores e demonstram fraqueza, como amor, dor, e outras.

Complementarmente, para compreender como não apenas a feminilidade, mas também a questão racial está relacionada a hierarquização de emoções e construção de uma masculinidade hegemônica podemos mencionar os processos de colonização e as ações imperialistas de Estados como Estados Unidos e Inglaterra (De Jesus, 2014). Conforme Diego de Jesus (2014) havia uma ideia de “masculinidade imperialista racializada, em que indivíduos do sexo masculino brancos, “civilizados” e “aventureiros” domavam ou derrotavam outros indivíduos vistos como “selvagens” ou “inferiores”, como os índios norte-americanos, os africanos, os hispânicos ou os filipinos. Fosse para conquistar a fronteira norte-americana ou “proteger” o hemisfério ocidental do colonialismo europeu, a masculinidade dependia de um nacionalismo militarista e chauvinista.” (p. 333). Tal narrativa definiu a identidade dos Estados no Sistema Internacional, indicando uma construção histórica de um patriotismo atrelado à masculinidade, designando papéis atrelados ao gênero na política internacional (De Jesus, 2014).

Considerações Finais

 

Podemos concluir, com as discussões introduzidas neste post, que há uma figura bem construída de masculinidade hegemônica, contudo, existe também resistências femininas ao patriarcado, bem como homens portadores de masculinidades alternativas. Tal estrutura está presente não somente no campo individual e doméstico como também na política internacional, de modo que a compreensão do conceito de soft nation aponta uma estrutura de hierarquização das emoções e construção de um espaço generificado no Sistema Internacional. Os Estados querem ser potências reproduzindo padrões e comportamentos da masculinidade hegemônica. Nesse sentido, a soft nation, ou seja, a nação que se distancia dos padrões da masculinidade hegemônica, representa uma identidade alternativa, a qual é hostilizada e marginalizada, sendo colocada em locais de subalternidade.

Por fim, em busca de uma abordagem otimista em relação ao contexto que nos encontramos, destacamos que em "The Cultural Politics of Emotion", Sara Ahmed (2014) propõe uma ótima reflexão final sobre o cenário futuro e o conceito de esperança. Para as feministas, a esperança é essencial para conceber uma realidade mais igualitária, ela é mais do que a força por trás da idealização de um futuro em que as mulheres não sejam mais marginalizadas e oprimidas, ela é o motor essencial para a contestação da ordem e desenvolvimento da resistência. Portanto, é evidente que a subjugação das mulheres na política e na sociedade em geral não só perpetua a dominação masculina, mas também mina qualquer possibilidade de progresso e igualdade de gênero. O desafio está além de romper com essas estruturas opressivas, mas também construir um futuro em que a esperança seja a norma, não a exceção.

Referências

 

AHMED, Sara. The cultural politics of emotion. Edinburgh University Press, 2014.

 

BEATTIE, Amanda Russell; EROUKHMANOFF, Clara; HEAD, Naomi. Introduction: Interrogating the ‘everyday’politics of emotions in international relations. Journal of International Political Theory, v. 15, n. 2, p. 136-147, 2019.

 

CONNELL, Robert W.; MESSERSCHIMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: Masculinidade hegemônica. Revista Estudos Feministas, v. 21, n. 1, p. 241, 2013.

 

DE JESUS, Diego Santos Vieira. Mundo macho: homens, masculinidades e relações internacionais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, v. 109, p. 309-364, 2014.

 

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases: Making feminist sense of international politics. Univ of California Press, 2014.

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